sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Canhões de Agosto, de Barbara W. Tuchman - Comentários



            Creio que este livro de Bárbara Tuchman é um exemplo excelente de como a história, a despeito de todas suas pretensões científicas, é uma atividade essencialmente literária. O historiador de sucesso é, em grande medida, um magnífico narrador. Uma boa narrativa, infelizmente, exige um roteiro bem definido; em outras palavras, certezas. Algo no estilo do “foi exatamente assim que as coisas aconteceram”.
            O historiador gosta de chamar a atenção para sua pesquisa documental sempre que quer realçar de onde emana a autoridade com que faz algumas declarações; Barbara não foge à regra: “todas as condições de tempo, pensamentos ou sentimentos e estados de espírito públicos ou particulares, das páginas seguintes, têm uma base documental”. É apenas lamentável que ela não seja tão franca em apresentar as escolhas que fez quando a documentação era omissa ou contraditória em algumas questões importantes.
            Não quero de forma alguma tirar o mérito da obra; “Canhões de Agosto” ganhou o Prêmio Pulitzer de 1962 e é seguramente uma das melhores obras sobre os momentos iniciais da Primeira Guerra Mundial; o único livro que se aproxima é “Agosto 1914”, de Soljenitzin, que trabalha com um recorte temporal e geográfico muito mais específico, da invasão da Prússia por forças russas no inicio do conflito, enquanto Bárbara cobre os acontecimentos das duas frentes.


            A estratégia discursiva de Bárbara Tuchman pode ser resumida em fazer coro com a versão largamente aceita sobre os fatos, embora ela busque demonstrar que faz isso a partir de uma análise isenta dos fatos. Por exemplo, a ênfase está posta nos planos alemães de violar a neutralidade da Bélgica, e na agressividade alemã em episódios  como a crise de Agadir, todos eles argumentos muito comuns em narrativas sobre o cenário que conduz à guerra mundial. Curiosamente, pouca atenção é dada à aliança ofensiva que os franceses estabeleceram com o Império Russo; a autora segue o caminho tradicional: era a estratégia mais eficiente para evitar uma nova invasão alemã, criando a certeza da abertura de uma segunda frente. Bárbara prefere ignorar o fato de que os franceses não ignoravam o fato de que a aliança russo-francesa praticamente obrigava os alemães a tomar a ofensiva à menor ameaça de mobilização por parte de seus vizinhos, como única forma de evitar um conflito prolongado onde seu país seguramente seria derrotado. Mais: os franceses sabiam que os alemães estavam planejando uma grande ofensiva para o intervalo de tempo necessário para os russos mobilizarem suas tropas, e estavam investindo pesado em ferrovias russas que pudessem reduzir esse tempo; isso evidentemente estava sendo interpretado pelos alemães como uma ameaça.
            Embora seja evidente que os franceses façam planos para recuperar Estrasburgo, ela prefere ver os franceses do inicio do século XX de forma simpática e bonachona; estão ocupados em administrar seu papel de centro cultural do mundo e em administrar seu vasto império colonial. Quando na verdade a única coisa que dissuade os franceses de atacar é a evidente superioridade militar dos alemães; se os alemães vivessem algum tipo de situação interior semelhante à dos russos em 1905, não resta dúvida de que os franceses cruzariam a fronteira.
            Há uma disparidade na forma como se pesam a violação da neutralidade belga, por parte dos alemães, e a violação da soberania turca no episódio de apresamento dos navios de guerra turcos que estavam sendo construídos em estaleiros ingleses; as duas medidas são indicativos claros de uma visão européia: o pragmatismo militar está acima de considerações diplomáticas.
            Por outro lado, acredito que Bárbara trata com bastante equilíbrio a questão das atrocidades cometidas por forças alemãs em território belga, desconstruindo alguns mitos criados pela publicidade aliada: ainda que não se possa negar uma política deliberada de terror contra populações civis, com a intenção de solapar rapidamente a resistência inimiga, as ações decorrem em boa medida por conta da inexperiência das tropas e um medo paranóico de ação de franco-atiradores na retaguarda.
            Finalmente, Bárbara deixa evidente, ainda que procure minimizar isso em seu texto, que a derrota alemã decorre de um enorme erro de avaliação por parte do comando alemão: crendo que as forças francesas estavam derrotadas e debandando, enfraqueceram sua ala direita com o envio de tropas para a Prússia e mantiveram tropas num ataque frontal pelo centro. A tenaz que avançava pela direita só não foi detida antes do Marne por conta da impressionante incapacidade de se coordenar uma contra-ofensiva entre as forças franco-inglesas presentes na fronteira belgo-francesa. Não ouve um “milagre do Marne”, uma vez que os franceses haviam então alcançado superioridade numérica, suas linhas de suprimento haviam sido encurtadas e estavam dispondo de tropas frescas, enquanto os alemães estavam em desvantagem numérica, desgastados por horas de marchas forçadas (fruto da teimosia com que von Kluck estava a dois dias desobedecendo ordens de fazer alto) e com suas linhas de provisão excessivamente distendidas; na verdade, o milagre foi de fato que os alemães conseguissem evitar ser completamente cercados e destruídos no Marne, o que poderia ter conduzido a um rápido fim do conflito.

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