sábado, 16 de junho de 2012

Isis no mundo romano: uma breve síntese historiográfica



            A proposta do tema é refletir sobre a religiosidade no mundo romano a partir das novas concepções historiográficas, da ênfase no caráter multicultural do Império.
            A historiografia sobre o Império Romano mudou de foco nas últimas décadas: a idéia de uma imposição unilateral de valores culturais a partir do centro (romanização) foi substituída pela percepção de que as trocas culturais entre Roma e as regiões periféricas do império se davam numa via de mão dupla; a constatação de que as províncias não eram tão “romanas” quanto se pensava anteriormente logo levou à percepção de que a própria cultura romana foi profundamente influenciada pelas culturas estrangeiras, alterando sua própria identidade cultural; compreender como as influências estrangeiras mudaram a identidade cultural romana tornou-se imperativo para a compreensão da identidade dessa nova sociedade cosmopolita que é gestada no Mediterrâneo (para um debate sobre Romanização ver Woolf 1998; MacMullan 2000 e Hingley 2005)
            O papel da influência grega nesse contexto é bastante conhecido; a fusão cultural é tão intensa que os estudiosos preferem falar em termos de mundo greco-romano (Guarinello 2010), mas está cada vez mais evidente que o Egito teve um papel de grande destaque dentro da cultura romana; a intensidade da Egiptomania romana é revelada pela grande quantidade de achados arqueológicos e pelas inúmeras referências literárias.
            A deusa Isis sempre foi, direta ou indiretamente, central para o estudo das influências egípcias no mundo romano. O novo paradigma destes estudos (Takács 1995; Versluys 2002; Elsner 2006) revela que Isis transcende o aspecto religioso e faz parte de um processo cultural de interação muito mais amplo, colaborando, por exemplo, na construção da ideologia imperial de Augusto (Versluys 2002; Nilo em Tiber); é necessário, portanto, compreeender toda uma dinâmica que determina a escolha pelos elementos a ser apropriados, como são apropriados e o real significado dos novos elementos construídos, da ressignificação.
            O culto de Isis experimentou uma notável expansão dentro do mundo romano, atingindo os pontos mais distantes do império e penetrando profundamente em todos segmentos da sociedade romana, desde a pessoa do próprio imperador e seu séquito, passando pelas elites, como o demonstram a presença de inúmeras capelas particulares dedicadas ao culto de Isis nas propriedades aristocráticas, em Pompéia e diversas cidades romanas e chegando às classes populares, sobretudo aos escravos (WITT, p.60) .
            A historiografia dos cultos egípcios no periodo romano é relativamente recente. O estudo da religião egípcia desperta grande interesse na Europa a partir da expedição de Napoleão ao Egito (1798) e experifmenta grande impulso a partir da decifração dos hieróglifos (1822); o foco dos estudos, no entanto, é a antiga civilização egípcia, desde as origens até o fim do Novo Império. Sobretudo a partir da helenização (305 aC) há um entendimento de que a cultura egípcia perde a originalidade e torna-se decadente. Nesse contexto a expansão dos cultos egípcios pelo mundo romano é vista como parte do processo de “decadência moral” experimentada pelo império; o estigma negativo que paira sobre os cultos egípcios tem duas origens fundamentais: a tradição histórica cristã (que gira em torno de como o cristianismo derrotou as superstições vigentes na época romana e produziu uma revolução moral a partir daí) e a idealização que os autores iluministas fazem da cultura romana, “pura” no periodo republicano e progressivamente “corrompida” na fase imperial com a chegada dos cultos orientais (Gibon, p. 35).
            O estudo metodológico do sincretismo religioso no Império Romano inicia a partir de 1906 com o historiador e arqueólogo belga Franz-Valéry-Marie Cumont, autor do clássico Les religions orientales dans le paganisme romain. Cumont, no entanto, considera o processo de penetração e assimilação de cultos como o mitraísmo, o judaísmo e os cultos egípcios como uma unidade cultural (religiões orientais) em que as particularidades de cada culto são pouco importantes; o próprio fato de uma mesma pessoa atuar ao mesmo tempo como sacerdote de Isis e de Mitra é citado como prova disso.
            As especificidades dos cultos egípcios no mundo romano passam a ser destacadas a partir da reunião metódica de fontes; em 1922 Theodor Hopfner publicou uma gigantesca coletânea de fontes primárias sobre os cultos egípcios, Fontes Historiae Religionis Aegypticae; e em 1940 um estudo comentado do Isis e Osíris de Plutarco. Reginald E. Witt publica a partir de 1971 uma série de trabalhos sobre o culto de Isis, em especial Isis in the Graeco-Roman World.
            Autores como Witt, Tran Tam Tinh e Françoise Dunand chamam a atenção para a intensidade da penetração de elementos da cultura egípcia no mundo greco-romano, algo ignorado até então. O grande volume de estudos leva à realização da 1ª. Conferência Internacional de Estudos Isíacos (1997, Poitiers, França), evento que ocorre com regularidade desde então (2ª. Em 2002, Lyon; 3ª. Em 2005, Leiden; 4ª. Em 2008, Lyege). A nova geração de estudiosos (Laurent Bricaul, Miguel Versluys e Paul Meyboom) analisa o culto de Isis não apenas do ponto de vista religioso, mas sobretudo como chave interpretativa do intenso processo de apropriação de valores culturais egípcios no mundo romano; a representação da deusa Isis surge não apenas em contextos de culto religioso, mas também como motivo cultural e estilístico que remetem ao imaginário sobre o Egito. Essa interação cultural alcança grande amplitude e influencia comportamentos sociais e a própria dinâmica política. Isis está presente, por exemplo, na construção da ideologia imperial de Augusto; sua associação à figura do imperador (Isis Augusta) é uma clara apropriação do papel original de Isis no contexto egípcio, como protetora do faraó (encarnação e/ou representante de seu filho sagrado, Hórus). Essa poderosa inter-relação Isis/Egito vai levar à proposta de padronizar metodologias de estudo e as terminologias utilizadas (MALAISE, 2005).
            Paralelamente a essa inserção de motivos egípcios na cultura greco-romana ocorre o movimento contrário: o culto isíaco se apropria de elementos próprios da cultura das regiões onde se estabelece; isso afeta não só as representações estéticas, mas sobretudo o próprio corpo doutrinário do culto; um destes temas, em particular, se tornaria um dos principais motivos representados nas pinturas murais dos templos de Isis, atrás apenas do motivo principal, a morte e ressurreição de Osíris: o mito de Io.
            Io é uma princesa grega que desperta a paixão de Zeus; isso atrai a ira de Hera, sua esposa, que a transforma em uma vaca, e sua implacável perseguição a obriga a cruzar os mares e se refugiar no Egito. Cansada de seus sofrimentos, Io suplica a Zeus pela morte. Este, comovido, restitui-lhe a condição humana. O mito, narrado por autores como Esquilo e Ovídio, tem imensa popularidade no mundo grego; em sua honra são nomeados o mar Jônico (mar de Io) e o estreito de Bósforo (que significa “pata de vaca”, em referência ao estado animal de Io). O exílio de Io no Egito produz uma imediata associação com Isis. Na reapropriação do mito observada nas pinturas dos templos é a própria deusa Isis quem, comovida com os sofrimentos de Io, lhe restitui a condição humana. As lamentações de Io são frequentemente associadas aos próprios lamentos de dor de Isis durante a peregrinação para operar a ressurreição de seu marido, e conduz a uma mensagem de profundo significado para o culto: Isis, devido ao próprio sofrimento que experimentou, é especialmente inclinada a sensibilizar-se com o sofrimento humano (BRENCK, 2009); este seria um dos elementos que explicaria a rápida expansão do culto pelo mundo mediterrânico. As representações murais sobre o lamento de Io e o sofrimento de Isis em ambientes domésticos e públicos são muito comuns na Grécia e Roma dos séculos seguintes, a ponto de poderem ter influenciado a forma como Paulo e seus seguidores apresentam na Grécia o sofrimento de Jesus, realizando seus discursos em ambientes decorados com estes motivos (BALCH, 2003).
            A epopéia de Io também serviu de inspiração para um dos textos de apologia de Isis mais conhecidos na literatura romana, o romance Metamorfoses (O Asno de Ouro), de Lucius Apuleio, escrito na segunda metade do século II dC; o mote é praticamente o mesmo: o personagem Lucius é transformado num asno por poderes mágicos; nesse estado passa por uma série de desventuras até que decide apelar a Isis para recuperar sua condição humana.
            O interesse moderno pelo culto de Isis cresceu a partir da sugestão de alguns estudiosos, sobretudo R. E. Witt, de que o culto isíaco sofreu um enorme processo de apropriação por parte do cristianismo, numa escala talvez muito maior do que a sugerida anteriormente, principalmente quando se fala das origens da Mariolatria; o assunto tornou-se ainda mais instigante quando escavações arqueológicas recentes na Campânia e diversas regiões da Europa sugerem uma enorme sobrevida do culto em pleno período cristão, e um recurso à violência em grande escala para destruir os locais públicos de culto à deusa (BRICAULT, 2007).

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