sexta-feira, 1 de julho de 2011

Maldita Guerra, de Doratioto: um debate historiográfico


            O autor está analisando as causas do conflito (Guerra do Paraguai); ao apresentar um novo modelo explicativo, ele contesta os discursos historiográficos vigentes:
 O discurso do vencedor: é a justificativa oficial da entrada do Brasil na guerra; o Império estaria se defendendo da captura traiçoeira de um navio brasileiro no rio Paraguai e a invasão de seu território sem declaração de guerra; o Brasil atua em legítima defesa, e em seguida invade o Paraguai para destituir o tirano que escraviza o povo paraguaio e ameaça a paz na região. Fortalece o mito do “gigante pacífico” e está impregnado de dualidades no estilo herói x vilão, civilização x barbárie. É um discurso carregado de apologia à coragem dos heróis nacionais que legitima o nacionalismo monárquico e que será apropriado mais tarde pelos governos militares.
 O revisionismo: é a contestação da explicação oficial, sempre com motivação política. A primeira grande contestação à versão oficial é feita por autores positivistas no início da República. Há o receio de uma reação monárquica e a preocupação em consolidar o novo regime. O Brasil passa a ser apresentado como responsável pelo conflito.
            O momento mais importante do revisionismo ocorre na década de 1970, com o livro Genocídio Americano: a Guerra do Paraguai, de Júlio José Chiavenatto; no novo modelo explicativo o conflito é visto como parte do processo de expansão do imperialismo inglês pelo mundo. O interesse inglês pelo estuário do Prata é evidente, e a Inglaterra tentou controlar militarmente a região no início do século XIX. Para Chiavenatto os ingleses estariam incomodados com o modelo de economia autônoma que os paraguaios estariam construindo, e teriam estimulado Argentina e Brasil (apresentados então como satélites da potência) a explorar as tensões regionais existentes e atacar o Paraguai. Lopez deixa de ser um tirano cruel para tornar-se um herói antiimperialista.
            Para Doratioto esse modelo peca num quesito essencial: não se sustenta em documentação histórica; a Inglaterra era então o principal parceiro econômico do Paraguai, e documentos demonstram o esforço do representante inglês em Buenos Aires, Edward Thorton, em mediar uma solução negociada para o conflito.
            Chiavenatto estaria, na verdade, muito mais interessado em desacreditar as bases do discurso nacionalista da ditadura militar, fortemente apoiado no conflito e em seus heróis (Caxias é o patrono do Exército e Tamandaré da Marinha). Estaria havendo ainda um paralelismo anacrônico com a situação então vivida por Cuba, isolada pelos Estados Unidos e seus satélites.
             No modelo explicativo compartilhado pelo autor a Guerra do Paraguai está inserida no processo de construção dos estados nacionais da região; esse processo vem sendo analisado pelos historiadores a partir da década de 1980 e vê com novos olhos os processos de independência na América; ao contrário do que afirmam os discursos nacionalistas, a emancipação política simplesmente inicia o processo de construção dos estados nacionais. Esse processo herda dois problemas complexos do passado colonial, que opunham espanhóis contra portugueses: a luta pela definição de fronteiras e a disputa pelo controle do estuário do Prata e liberdade de navegação pelos rios.
            A isso vão se somar os conflitos para definir politicamente os novos estados: enquanto Buenos Aires e Rio de Janeiro lutam para estabelecer governos fortemente centralizados, as províncias lutam para obter diferentes graus de autonomia; algumas lutarão pela independência (caso do Paraguai, que não aceita a autoridade de Buenos Aires; e dos Farroupilhas, no sul do Brasil, que estão contestando também a monarquia).
            A formação do Uruguai ilustra perfeitamente os conflitos: disputada por argentino e brasileiros, a região torna-se independente para quebrar o monopólio argentino na região do Prata e garantir a autonomia de um porto alternativo a Buenos Aires, Montevidéu.
            A disputa em torno da autonomia das províncias vai opor dois partidos na Argentina: blancos (conservadores, centralistas) e colorados (liberais, federalistas); haverá uma longa guerra civil e o país seguirá dividido por quase uma década: de um lado a Confederação Argentina, com capital em Paraná e constituição própria, e de outro o Estado de Buenos Aires.

O tenso equilíbrio
            O delicado equilíbrio na região é construído então a partir da oposição entre Argentina e Brasil: o Brasil teme que Buenos Aires assuma o controle do Paraguai e do Uruguai e passe a estimular movimentos republicanos no sul do país. O Rio de Janeiro reconhece a independência paraguaia em troca do direito de navegar no rio Paraguai, única via de comunicação com a região do Mato Grosso.
            Buenos Aires teme que o Império invada o Uruguai e ameace todas suas províncias no Entre Rios.
            O Paraguai está numa situação particularmente desconfortável: tem sérios conflitos de fronteira com seus poderosos vizinhos e depende da boa vontade argentina para ter um acesso ao mar. Apenas com o Brasil o Paraguai tem uma disputa sobre uma área de 200.000 km2 no atual Mato Grosso.
            O ditador Francia, em 1811, estabeleceu um violento processo de centralização política e começou a prepara o país para defender sua independência. O país vive um período de isolamento e centralização política; o estado passa a monopolizar as principais atividades econômicas, como a produção de mate. A partir de 1850, beneficiando-se de acordos com províncias federadas e Buenos Aires (ambas em plena guerra civil), o Paraguai adquire o direito de navegar no Prata e inicia um intenso processo de modernização utilizando as receitas da exportação de mate.
            Na década de 1850 as disputas sobre fronteiras e sobre a livre navegação no Rio Paraguai (única via de comunicação do Brasil com o Mato Grosso) criam uma escalada militar na região; em 1857 o Brasil encomenda navios na Europa e negocia uma aliança com a Confederação Argentina para atacar o Paraguai; este, pressionado, concorda com a livre negociação, mas passa a intensificar seus preparativos militares.
            Novos atritos sobre a navegação provocarão um aumento da presença militar brasileira no Mato Grosso em 1862; o Paraguai chega a mobilizar 5.000 soldados.

 1862 – A tensão se intensifica:
  • No Paraguai Francisco Solano Lopez ascende ao poder; diferente da postura conciliadora de seu antecessor, Lopez deseja ter maior peso político nas questões envolvendo a região do Prata e sonha com uma aliança com líderes federalistas argentinos e com o governo blanco do Uruguai que lhe garanta um acesso seguro ao Prata.
  • Após uma longa guerra civil ocorre a reunificação nacional da Argentina sob o controle do governo de Buenos Aires; Mitre, o líder colorado, sabe que sua conquista é ameaçada pela postura independente das províncias do entre-rios e pelos federalistas que estão asilados sob a proteção do governo blanco do Uruguai.
  • No Brasil, o Partido Liberal assume o governo e adota uma política mais agressiva em relação ao Prata, pressionado por fazendeiros gaúchos que possuem propriedades no Uruguai e querem a queda do governo blanco.
Uruguai – o estopim da guerra
            O esforço do governo blanco do Uruguai para aumentar sua autonomia em relação a seus vizinhos altera a dinâmica de equilíbrio da região; o Uruguai quer se livrar da interferência de Buenos Aires e do Brasil em seus assuntos internos construindo uma aliança com o governo paraguaio e com a resistência federalista no Entre Rios e Corrientes. Isso produz uma reação imediata: em 1863 o líder colorado Venâncio Flores, patrocinado por Buenos Aires, entra no Uruguai com tropas pretendendo derrubar o governo blanco. Sob pressão dos fazendeiros gaúchos o Brasil vai progressivamente intervir na guerra civil uruguaia, sob pretexto de proteger os brasileiros residentes no país.
            Em 1864 a Inglaterra tenta mediar negociações para colocar fim ao conflito, sem êxito. Brasil e Argentina passam a agir de forma coordenada no Uruguai; é um dos pontos importantes da nova situação no Prata: a aliança entre os governos liberais da Argentina e do Brasil.
O Paraguai, temendo que a aliança dos dois paises ponha sua própria independência em perigo, protesta.
            Em outubro forças brasileiras entram no Uruguai; os protestos paraguaios são ignorados, as ameaças de Solano Lopez não são levadas a sério.
            Em novembro os paraguaios capturam o navio brasileiro Marques de Olinda. Em fevereiro de 1865 a esquadra brasileira bloqueia o porto de Montevidéu; o governo blanco de Aguirre cai em seguida. Flores assume o governo e passa a formar com Brasil e Argentina a Tríplice Aliança.

Solano Lopez, o mito
            O autor atribui a construção do mito de Lopez como herói (fins do XIX) a motivos econômicos, sobretudo o esforço de seus herdeiros para recuperar propriedades; o mito atende também ao processo de legitimação do Partido Colorado paraguaio, criado em 1887 por um seguidor de Lopez, e à mobilização nacionalista durante a guerra do Chaco (1932-35); em seguida a imagem de líder anti-imperialista será utilizada para legitimar a ditadura militar de Stroessner.
            Nos anos 1960/70 há uma importante corrente revisionista da Guerra do Paraguai: a guerra é apresentada como resultado dos esforços da Inglaterra para destruir um perigoso foco de independência econômica. Doratioto considera que esse esforço revisionista é fruto do momento político vivido então, em que se busca destruir os heróis nacionais cultuados pelos governos militares, ao mesmo tempo em que há uma associação com a enorme pressão política que o governo americano exerce sobre o governo comunista de Cuba.
            Esse discurso não teria base histórica, porque a Inglaterra era o maior parceiro econômico do governo paraguaio, responsável por 75% de todas suas importações.
                        O autor finaliza com uma observação interessante: o quadro de conflitos na região do Prata permitia soluções diplomáticas; a guerra se cristaliza num momento em que todos os personagens envolvidos, a partir de informações parciais ou falsas do contexto, consideram que um conflito armado é a saída mais vantajosa: o governo blanco do Uruguai acha que uma invasão brasileira vai trazer imediatamente o Paraguai em seu auxílio; o Paraguai acredita que um demonstração militar em apoio do Uruguai vai lhe dar uma posição de força nos debates do Prata e nos acordos de fronteira; a Argentina quer consolidar sua unidade eliminando as forças antagônicas exiladas no Uruguai e nas províncias vizinhas do Paraguai. O Brasil, finalmente, quer reconduzir os colorados ao poder no Uruguai, onde são parceiros tradicionais dos grandes proprietários de terras gaúchos; agindo de forma truculenta no Prata os liberais esperam compensar as críticas recebidas durante a Questão Christie.




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