quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Miscigenação na formação da identidade nacional - idéias de Euclides da Cunha expressas em "Os Sertões"

 Euclides da Cunha e Os Sertões
O autor, a obra e o contexto historiográfico

Nosso propósito nese trabalho é analisar as idéias do autor sobre a influência da miscigenação na formação de uma identidade nacional.
Euclides da Cunha (1866 – 1909) teve uma formação muito distinta da maioria dos escritores de sua época: foi militar e engenheiro; essa formação técnica e seu entusiasmo pelo cientificismo da Belle Epoque são traços característicos de sua obra mais famosa, Os Sertões, escrita em 1899, enquanto construía uma ponte em São José do Rio Pardo.
Era um entusiasta republicano; por conta disso foi expulso da Escola Militar (1888) e teve participação nos eventos da proclamação da República.
Sua obra está inserida no contexto de duas grandes dinâmicas:

O esforço do novo regime republicano em construir um imaginário que lhe dê legitimação e reforce a identidade nacional (Marins, 69). A construção da identidade nacional trabalha dois conceitos complementares: o Povo (dimensão cultural e antropológica) e a Pátria (a história, seus símbolos e heróis). Euclides, um republicano idealista, inicialmente viu em Canudos uma reação monarquista e a oportunidade de uma cruzada que legitimasse e consolidasse o novo regime. Esteve no local dos acontecimentos para cobrir a fase final da campanha, e então se deparou com uma realidade muito mais complexa do que esperava.

O cientificismo e o darwinismo social são dominantes no final do século XIX; adaptações do conceito de seleção natural das espécies são aplicadas às raças, levando à idéia de que elas são biologicamente distintas; partindo de uma visão europocêntrica, forma-se uma hierarquia racial. O desdobramento seguinte é a condenação da mistura; a miscigenação é vista como uma forma de degeneração.  Estas idéias invadem as ciências, sobretudo a medicina, e se espalham pela sociedade. Vão influenciar profundamente Euclides da Cunha, e ele vai se tornar um dos porta-vozes destas idéias no Brasil, em diversos artigos jornalísticos.

Organização da Obra

Os Sertões obedece uma concepção determinista do mundo; a obra é divida em três partes: a terra, o homem e a luta.
Na primeira parte Euclides descreve minuciosamente a topografia, a vegetação e os acidentes naturais das diferentes partes do Brasil; Euclides aceita as idéias de Hegel de que a geografia e o clima de uma região são determinantes na ação humana, criando diferenciações étnicas. E são determinantes na dinâmica histórica: a ocupação se dá de acordo com as facilidades oferecidas pelo terreno: uma vez ocupado o litoral, o interior foi ocupado a partir de rios próprios à navegação; planícies e planaltos próprios à agricultura. Os desertos e os grandes acidentes geográficos foram ocupados por último.
O clima influencia diretamente a fisiologia e a psicologia do homem; o calor será determinante no desenvolvimento diferenciado que terão o norte e o sul do Brasil; enquanto o calor deprime e exaure (Sertões, 78), dificultando a penetração no norte, o clima ameno do sul estimula o paulista a adentrar continente adentro e desbravá-lo.
            Nesse ponto Euclides começa a compor sua tese sobre a dinâmica étnica brasileira: o branco ocupa o litoral e passa a sofrer as influências deterministas do clima e da geografia do novo território. No norte a agrura do clima dificulta as entradas; o branco fica restrito ao litoral e traz o negro para trabalhar na agricultura. Com ele terminará por se misturar e gerar o mulato. O negro está no ponto mais baixo da escala racial europocêntrica. A mistura com tal elemento, nas adversas condições climáticas da região norte, dará origem à um raça de fracos e neurastênicos.
            No sul, porém, a situação é totalmente diversa: o clima ameno e a geografia favorável estimulam a ocupação do interior; a entrada vai facilitar a mistura com o índio; a absorção do índio vai produzir o que ele chama de cruzado das conquistas sertanejas, o mameluco audaz. O índio, a despeito de ser inferior ao branco, vai transmitir ao resultado da mistura sua principal força: seu vigor e a completa adaptação ao meio; surge a raça dos curibocas, ou mamelucos; passarão à história como paulistas.
            Esta gente empreendedora e forte será responsável pelo desbravamento das terras brasileiras. Ele delineia aqui duas dinâmicas históricas próprias ocorrendo paralelamente:

            No sul, os paulistas, protegidos pelo “isolador étnico” que a Serra do Mar representa (Sertões, 82), lançam-se resolutamente interior adentro; ele enumera suas qualidades: é um tipo autônomo, aventuroso, rebelde, libérrimo, com a feição de um dominador da terra; emancipado da metrópole, ele afasta-se do mar e inicia a epopéia das bandeiras. O Tietê convida-o a aprofundar-se; seguirão pelo sul até fazer contato com os assentamentos de Guairá; e pelo norte chegarão até o Amazonas. Porão fim a Palmares.

            No norte os colonos ficam presos ao litoral, entre os mares e o sertão inabordável; emperrados sob uma centralização estúpida, todo seu esforço é consumido em tocar as lavouras e expulsar os invasores estrangeiros. A riqueza dos canaviais conduz à acomodação, aos mexericos em torno das cortes e dos portos. Destaca apenas como nota positiva a ação evangelizadora dos jesuítas, os únicos que logram adentrar o sertão pelo norte; suas missões vão constituir o início de muitos vilarejos entre a Bahia e o Maranhão.

A formação étnica

            Euclides mostra evidente preocupação em minimizar a importância do negro no processo de ocupação do território; segundo ele, entre os séculos XVI e XVII a presença do negro e do mulato está limitada aos canaviais do litoral norte; sua presença no sul e no sertão é inexpressiva.
            Os mamelucos paulistas, enquanto isso, chegaram ao Rio Grande do Sul e à região das Gerais; subindo pelo Rio São Francisco, que ele considera um “unificador étnico” (Sertões, 96), farão contato com as missões dos jesuítas estabelecidas no sertão nordestino.
            As primeiras vagas bandeirantes são basicamente predadoras; demandam o apresamento dos índios. É com a mineração que se inicia a fixação do homem na região; na esteira das “catas” vem o gado. Seguindo as trilhas do bandeirante e do jesuíta, vem o vaqueiro. Para Euclides da Cunha, o sertanejo é um desenvolvimento colateral dos mamelucos paulistas, uma mistura do gentio local com os bandeirantes.
            Euclides cita, em apoio de sua teoria, textos de Pedro Taques fazendo referência a povoados de paulistas e seus descendentes no vale do São Francisco desde o século XVIII (Sertões, 97). Estes descendentes mantêm intacta a índole varonil e aventureira dos primeiros.
            Ao contrário dos próprios paulistas, que vão seguir se miscigenando e vão decair, o sertanejo, insulado pela Serra Geral, permanece puro; mescla magnífica da índole aventureira do bandeirante e da impulsividade indígena, vai desenvolver uma cultura própria; para o autor eles são o cerne vigoroso da nossa nacionalidade. E a ressalva: quase sem mescla de sangue africano (Sertões, 99); apesar de chegar a admitir a presença de quilombos e quilombolas no interior baiano, ele minimiza sua participação na dinâmica geral.
            Os povoamentos dessa região têm basicamente três origens: cercanias de áreas de mineração (catas); aldeias convertidas em missões religiosas e fazendas de gado.
            A região criadora de gado, no século XVIII, estende-se de Minas à Goiás, do Piauí ao Maranhão e Ceará. O vaqueiro é a figura dominante nessa sociedade original, com características próprias; aqui o couro do vaqueiro se torna a armadura flexível do jagunço.
            A ocupação do sertão baiano inicia com a chegada dos jesuítas, a partir de 1682. As aldeias são convertidas em missões. Logo chegam os bandeirantes e tomam conta do território. Os chefes indígenas são convertidos em capitães, os índios catequizados usados para combater os que ainda vivem na selva.
            Alguns bandeirantes se estabelecem em fazendas de gado; são feitas grandes concessões de sesmarias. Estes primeiros latifundiários criaram obstáculos para a vinda de novos povoadores, temendo a concorrência e a divisão das terras. Uma carta régia de 1701 proibiu as comunicações entre aquela região e a região das minas. Assim insulados e entregues à vida pastoril, os curibocas, divorciados das gentes do sul e da mestiçagem do litoral, adquiriam uma fisionomia original (Sertões, 105).
            Para Euclides, essas populações do médio São Francisco, mistura do sangue tapuia com os mamelucos paulistas, apresentam traços físicos característicos e podem ser classificadas como uma sub-raça; o sertanejo do norte é uma subcategoria étnica constituída.

O Parêntesis

            Euclides resume aqui as idéias em voga do darwinismo social: a mistura de raças é, na maioria dos casos, prejudicial. O mestiço é, quase sempre, um desequilibrado, histérico, decaído. Cita Foville, que praticamente o vê como um caso patológico.
            Em seguida faz uma contraditória análise do sertanejo enquanto produto da mestiçagem; embora não verifique neles os defeitos comuns descritos pelos mestres europeus (afortunadamente, pois ele próprio é um descendente de mamelucos), vê o perigo de serem esmagados não pela força, mas pela civilização de uma raça superior, teoria que ele atribui a Gumplowicz.
            E conclui: a salvação do sertanejo foi ter sido submetido a um longo período de isolamento. Isso permitiu que se consolidasse. Não se trata de um degenerado, portanto; é apenas um retrógrado, alguém atrasado em três séculos em relação aos do litoral.
            Aos do litoral atribui um fardo maior: miscigenados, tiveram que absorver as funções altamente complexas da cultura branca, o que terminou por atrofiar seus órgãos mal constituídos...
            Luis Costa Lima tem uma tese interessante a esse respeito: Gumplowicz, austríaco, escrevia em alemão; Euclides, que mal lia inglês, deve ter lido uma tradução francesa, e provavelmente não o compreendeu bem, pois Gumplowicz discorda abertamente do darwinismo social que o próprio Euclides professa; sua compreensão de raças é muito mais sociocultural do que biológica; para ele o sangue vem depois da dinâmica sociocultural (LIMA, 23/08/2009)
            Ao mesmo tempo em que critica os adeptos de uma fusão homogênea dos três elementos básico, o branco, o índio e o negro, que convergiriam para uma raça única (branca, para alguns; mulata, para outros), denunciando tais idéias como pseudo-científicas, ele é conflitante em suas próprias idéias: não acredita numa unidade racial, mas considera que estamos caminhando para a formação de uma “raça histórica” (Sertões, 70) e que nossa evolução biológica estaria condicionada a uma evolução social.

O sertanejo enquanto etnia sociocultural

            Além da questão racial, Euclides vê no sertanejo uma identidade sociocultural própria, assim como a do gaúcho dos pampas. Descreve-o como um Hercules-Quasímodo; realça sua força (“o sertanejo é antes de tudo um forte”) para em seguida considerá-lo esteticamente uma caricatura de ser humano, a antítese do gaúcho.
            Forjado nas durezas da caatinga e na lida com o gado, o jagunço é uno com suas vestimentas de couro e sua montaria. O sertanejo é antes de tudo um vaqueiro. Este estilo de vida é baseado na honra e na solidariedade.
            Lista as peculiaridades de sua cultura: os desafios dos repentistas e a extrema religiosidade. A religiosidade do sertanejo é tão mestiça quanto ele; aqui estão misturadas as crendices indígenas, como o saci e a caapora; o animismo africano e os benzimentos e crendices católicas do século XVI. Sempre preso a explicações biológicas, Euclides considera a religião sertaneja como um caso de atavismo: no sertão sobrevive, atemporal, a religiosidade medieval portuguesa, com o capeta espreitando em cada esquina e o misticismo político do sebastianismo.
            E atribui à ação do meio as características psicológicas dessa religiosidade: a dura realidade das secas seria o motor principal dessa indiferença fatalista pelo futuro e da tremenda exaltação religiosa. Nesse sentido ele identifica em Antonio Conselheiro uma síntese dessa religiosidade, uma síntese do sertanejo (Sertões, 149).

            Ao analisar seu processo histórico, considera o período de formação, entre as bandeiras e as missões, como a fase de equilíbrio; com a descoberta de ouro no Rio das Contas, no início do século XVIII, o contato com os garimpeiros vai influenciar negativamente o sertanejo; deixando de lado a criação de gado para dedicar-se à loucura do ouro, à fantasia da riqueza fácil, vai conhecer a fome e a violência à medida que as minas se esgotam. Ao garimpeiro sucedeu o jagunço, saqueador de cidades; ao capangueiro das minas vai suceder o coronel, o dono político de uma região.
            O jagunço vai espalhar o terror pelos sertões; nessa nova sociedade todos os problemas se resolvem à bala ou com a parnaíba, o terrível facão do cangaceiro.
            É um outro país, absolutamente alheio ao que se passa no litoral; como constata o próprio Euclides, no imaginário do matuto sertanejo o litoral é a região das “terras grandes”; ali, próximas umas das outras, estão o Rio de Janeiro, Bahia, Roma e Jerusalém (Sertões, 230).

Conclusão

            O Euclides que segue para Canudos é um; encantado com a modernidade e o progresso que a república representa, preocupado em defendê-la narrando uma cruzada antimonárquica e criando novos heróis que vão consolidar o novo regime; e, através das leituras dos europeus, confortavelmente instalado nas idéias racistas com verniz científico de sua época.
            O Euclides que retorna é outro; o que viu em Canudos mudou suas opiniões; o relato heróico é substituído pela denúncia feroz do genocídio, fruto da cegueira da sociedade, da imprensa e do estado republicano.
            Segundo Luiz Costa Lima, para escrever Os Sertões Euclides estudou a história de Portugal e do Brasil, especialmente a colonização e o povoamento; estudou noções de antropologia, de sociologia, de folclore, de psicologia social e daquilo que os cientistas sociais chamavam de ''comportamento normal das multidões'',
            Preocupado em explicar o Brasil à luz das teorias raciais européias, Euclides torna-se muitas vezes contraditório: enquanto seu modelo evolucionista considera as questões biológicas preponderantes e condena a miscigenação, ele vez ou outra se contradiz admitindo que a questão cultural é determinante ou admitindo vantagens na miscigenação de brancos e índios. A ambigüidade também é evidente quando vista sob o tripé meio-raça-cultura: embora o modelo determinista europeu dê primazia à influência do meio e da raça e Euclides procure ser fiel ao modelo, ela acaba por admitir em diversas passagens as singularidades do caso brasileiro e a maior importância da questão cultural, como ele próprio admite: Invertemos, sob este aspecto, a ordem natural dos factos. A nossa evolução biológica reclama a garantia da evolução social. Estamos condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos (Sertões, 70). 
O balanço final parece sombrio: o Brasil está dividido entre uma raça de sertanejos atrasados e uma raça neurótica que vive no litoral e é refém dos valores europeus, sem cultura própria. Uma mistura enfraqueceria ambas; e faltam qualidades aos litorâneos para que a força motriz da História lhes permita destruir os sertanejos...      

 Terra Ignota

            Luis Costa Lima, em seu estudo sobre Os Sertões, propões algumas idéias interessantes sobre a visão racial euclidiana (LIMA, 1997, p 15-32):

            Euclides é basicamente contraditório: ao mesmo tempo em que denuncia o massacre dos habitantes de Canudos, considera seu extermínio inevitável devido à “força motriz da História”, a destruição de uma raça fraca por uma superior. O ímpeto da denúncia perde força quando o autor a considera dentro da lógica determinista da antropologia biológica e evolucionista então em voga.
            Euclides considera que seus argumentos então fortemente alicerçados em bases científicas, pretensão que Costa Lima considera superficial e ilusória; Euclides, nesse sentido, é auto-indagativo, auto-indugente e teoricamente escapista. E cita como exemplo maior a equivocada leitura que faz de Gumplowicz, da qual se diz discípulo:
            Para Gumplowicz a história é impulsionada pelo conflito; o conflito se nutre da heterogeneidade étnica dos grupos. A guerra produz entre os elementos heterogêneos uma relação de dependência ou dominação; essa hierarquização do poder é o motor principal da dinâmica social. Mas a aliança ou hostilidade entre grupos é definida em termos políticos ou de divisão do trabalho, não por motivos biológicos.
            Sua concepção de raça considera fatores culturais (língua, religião, costume, direito, civilização) preponderantes sobre o sangue. E admite a mestiçagem como processo natural de assimilação de uma raça por outra, processo que chama de assimilação de heterogêneos. Nesse processo de assimilação os valores culturais do vencedor são impostos ao vencido, e é nesse sentido que ele fala de destruição de uma raça.
            É claro que não faltam autores em que Euclides pode basear suas idéias biológicas, mas atribuí-las a Gumplowicz  é um erro crasso.

Bibliografia

CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Rio de Janeiro, Francisco Alves & Cia, 1914
LIMA, Luis Costa. Terra Ignota: a construção de Os Sertões. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1997
LIMA, Luis Costa. Autor leu mal ideias de Gumplowicz . Disponível em: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20090823/not_imp423100,0.php  consultado em 22/10/2010
MOTA, Lourenço Dantas. Euclides da Cunha. São Paulo, Editora Três, 2001
HANSEN, João Adolfo. Resenha de Terra Ignota. Disponível em: http://resenhabrasil.blogspot.com/2009/terra-ignota-constru%C3%A7%C3%A3o-de-os-sertoes.html  consultado em 22/10/2010.
MARINS, Cosme Freire. Mosaico da Identidade Nacional: as representações do Brasil entre alunos de uma escola pública. São Paulo, USP, 2008.

Um personagem à parte

            Para este trabalho foi utilizado um agradecido exemplar da 5ª. Edição de Os Sertões, impresso em 1914 pela tradicional editora Francisco Alves & Cia., do Rio de Janeiro, e que estava à vários anos esquecido numa prateleira.
            Essa edição tem uma peculiaridade: numa nota intitulada Advertência, os editores informam que foi encontrado entre os papéis do autor, recentemente falecido, um exemplar da 3ª. Edição corrigida com diversas notas manuais e a seguinte observação, escrita por Euclides: “livro que deve servir para a edição definitiva”. Esta é, então, a primeira edição a incluir estas correções; a edição traz ainda duas fotos de páginas corrigidas pelo autor.
            A leitura do texto em seu português original, com seus “m” duplos (commissionado) e tantas outras peculiaridades (factos, geraes, typos, beccos e etc.) acrescentou à leitura do livro a dimensão de estudo de documento de época.

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